Número 12
Espalha-bolinho [adjetivo]: aquele que faz a rodinha dispersar; ser desagradável. Uso pejorativo. Etimologia: latim vulgar, do v. espalhus-bolim: ato ou efeito de fuder o papo agradável. Ver: paporuim.
Quem quiser que confira. Eu li no Houaiss que peguei emprestado e esqueci de devolver. Tenho receio que a senhora de 92 anos que trabalha na biblioteca faleça e sua alma venha em busca do Houaiss. Um receio apenas. Como os atentos e até as não-atentas podem já prever, tornei-me sinônimo do adjetivo transcrito, e a velhinha da biblioteca pouco tem a ver. Estou na merda. Acabado. A reputação de espalha-bolinho é uma tristeza. Uma vez sido, pra sempre fica sendo, diria meu irmão, Saulo Quecoisa.
Quarta, 22h11min
“‘No bar, todo mundo é igual’ – Reginaldo Rossi, o Roberto Carlos da filosofia de boteco”, diz a plaquinha que eu mesmo mandei colocar no Bar do Baiano.
O Baiano, nascido em Belo Horizonte, é gerente, cozinheiro, DJ e garçom do bar. Fora que faz a limpeza, de vez em quando, e ainda exercita o hobby de psicólogo.
_ Não sei de onde inventaram isso de espalha-bolinho.
_ Fica tranquilo. No bar, todo mundo é igual.
_ Ah, nem.
_ Não é culpa sua. É?
_ Olha ali, tem um cliente chamando, ó.
Baiano atende à clientela no ritmo preguiçoso da boa terra. Eu tomo tranquilamente só uma cerveja. A carne cozida da casa seria mais corretamente chamada se seu nome fosse gordura cozida. O Baiano não se preocupa nem com alvará nem com nome. Bate uma azia. Nossa, cabulosa.
Consternado, o gerente oferece uma tinguaça por conta. Um consolo.
_ Aceito. De graça, até ônibus errado.
O garçom busca o molha-beiço, a água que espanta até canário-belga e aproveita para exercitar um pouco do seu hobby.
_ É na função de psicólogo que cheguei aonde cheguei, gaba-se.
_ Isso não faz sentido, Baiano. Você é o único funcionário. Sempre foi o gerente. Chegou aonde?
_ Antes eu não me sentia como “o gerente”. Só como “o garçom”.
Da última vez que o encontrei, é preciso contar, Baiano disse: “Sujo, comporte-se como gerente da sua vida e tudo irá melhorar. Olhe para o meu bar. Quando decidi que eu seria o gerente tudo aconteceu”. Mesmo sem notar o que aconteceu, pois continuava tudo exatamente igual, segui o conselho.
_ Notou alguma melhora?
_ Sim. Agora levei a fama de espalha-bolinho.
_ Abra esse coração-vagabundo, Sujo.
_ Poxa, antes eu preferia ficar calado, quieto e todos desconfiavam que eu fosse idiota. Passei a falar e todos passaram a ter certeza.
_ Temos aqui um caso clássico. Você estava mais apático que cerveja choca. Agora, está transbordando mais que cerveja quente em copo descartável.
_ Que precisão! Acho que é isso mesmo.
_ Olhe para o copo de tinguaça. Está meio-cheio ou meio-vazio?
_ Depois que eu beber vai estar vazio.
_ Hum, interessante.
_ O quê?
_ Perceba, Sujo: você falou, mas não disse. Quer dizer, disse, mas não respondeu.
_ Mas esta pergunta é mais velha que a velha da biblioteca.
_ Quem conversa em demasia até ao cavalo dá bom-dia. Não adianta falar, falar e não dizer.
_ Pensei que as pessoas gostassem disso.
_ Entendo. É sua forma de gerenciar a situação. Sinal de insegurança.
_ Certeza?
_ Só pode ser isso. De tanto tentar agradar você desagrada e espalha o bolinho.
_ Sei não.
_ É isso. Só pode.
_ Será?
_ Você sabe que seu papel na sociedade é como o da meleca no nariz e isso tem lhe afligido, não é mesmo?
_ Meleca é sua mãe.
_ Hum, interessante.
_ O quê?
_ Você agride para se afirmar.
_ Chifrudo.
_ Interessante... Já sei!
_ Ah, sabe. Sabe nada.
_ Com toda razão, você se sente como um excremento.
_ Nada a ver.
_ Rejeição é algo natural. Relaxe. Alguns gostam dos olhos. Outros, da remela. Quem gostar de remela vai gostar de você – argumenta.
_ Não é nada disso.
_ E quem não gostar de remela, que se dane.
_ Colocaram azeite de dendê na sua mamadeira?
_ Ah, não. Aí não. Agora me ofendeu. Vou fechar o boteco. Ir pra casa ver minha Baiana...
_ Faz isso não.
_ Só se assumir que se sente como um excremento.
_ Suponhamos que eu fosse. Assim sendo, saberia quem sou, de onde vim, para onde vou. Afinal, merda é merda. E a verdade é que não sei nada disso...
_ Você falou, mas não disse. Enrolou, mas não admitiu. Interessante... – ele diz, todo debochado, enquanto ri. Não por último. O pagamento fiado é a forma de retaliação mais cruel que já ouvi falar.
***************************************************
Texto: Alexander Reis
Ilustração: Pablo Leandro