Número 19
Quarta, 09h35min
Bem, bem, bem, nenhum universozinho fantástico sobrevive sem os compañero, disse-me um amigo dos mais experientes.
Sugerindo mais intimidade do que tínhamos de fato, o safado veio com um papinho de deixe-me narrar minha história, dê cá um pouquinho de prestígio pro compañero.
O quê que há, rapaz, aqui não! De forma alguma, não senhor, a não ser que se trate da verdade mais pura e seja ainda assim interessante, quem narra aqui sou eu.
Sei que tenho arroubos de exigência, pois é árduo e desgastante ser ao mesmo tempo honesto e interessante. Mas cada um é exigente ao seu modo, pelo menos é o que dizem alguns dos grandes autores da filosofia de boteco. “Fora os que perderam qualquer padrão de exigência, seja por necessidade ou por alguma patologia mesmo”, foi o que li e vi que realmente é assim
Mudo a toada, volto dessa de divagar, pois disse ainda o amigo experiente que, bem, se eu recusasse, que Narcisão era eu então!, vê se pode, mas haja o que hajar, não sucumbo a ameaças, qual o quê. E o amigo só naquela, usando a experiência, aquele por que não?, o solidário não quer solidão, eu disse tudo bem, tudo está bom enquanto estiver bom; conte, meu filho, conte. Estamos todos em casa, pode contar, assuma o leme que vou descansar, “é com você” eu disse pra ele. “Está bem, obrigado”.
Segunda, 09h23min ou 09h25min, 3 anos antes
Uma segundona, 09h23min ou 09h25min da manhã, não me lembro bem.
_ Continue, hoje você é quem manda, falou tá falado.
_ Não vai anotar?
_ Tenho a memória boa, se houver algum buraco eu completo da minha cabeça.
Não vou contar o meu nome.
_ Por quê?
_ Naquele momento eu não lembrava, um lance de amnésia.
Não lembrava meu nome, não lembrava de nada, não sabia quem era o barrigudo na frente do espelho, quem seria?, um piri-pac brabo, brabo.
E eu naquela filosofia de não ter filosofia, ia indo, sem nome e sem nada, o que ia fazer? Fazia dias, a única cousa que eu sabia é que acordei num quarto.
_ Você disse cousa?
_ Foi o que eu disse.
_ Você disse quarto?
Acordei num quarto, ali na Santos Dummont, não muito longe da Tupis. No aposento tinha um ventilador que dava um ventinho gostoso, e tinha também um celular e um bilhete que dizia “Eldorado – o forró da sacanagem”.
Eu pouco saía do quarto, como eu pagaria aquele quarto? Na maior nóia, um rebuliço típico do centro me espantava, pela manhã eu dormia e assim eu ia, enquanto corria a barca.
_ Tudo bem, mas seja mais sucinto pra não perder o bonde; quem perde o bonde vai a pé, sabe cumé.
Quem fica bem sob pressão é um cupim bem temperado, a suã também. Vamos por partes, como diz aquele que prepara o porco para a feijoada, ou você pensa que a feijoada nasce como chega ao prato?
_ Fora os que plantam pés-de-feijoada, muito comum lá em São Judas das Botas, sei como funciona a cousa.
Conversa mole, Sujeito, deixo pra ti, compañero, mas a verdade é que eu só tinha coragem de deixar o quarto à noite, tanto que numa dessas, dei uma voltinha esperta e me deparei com um ônibus em um momento batizado como crucial por pessoas de vocabulário limitado.
_ Se quiser posso procurar um sinônimo de crucial e colocar.
_ Não precisa.
_ O que aconteceu de cruciális, decisivo, terminante?
Eu vi um ônibus. Na frente, um número qualquer e um letreiro que dizia “Eldorado”.
Mesmo sem o dinheiro da passagem, entrei. Expliquei a situação com calma e o trocador perplexo disse-me “aí no seu bilhete não está escrito Eldorado, mas, sim, El Dorado. Conheço bem: um forrozinho perto ali do Santa Inês”. E completou com um tal de você tem que pagar sua passagem.
_ A solidariedade não vive em todos os corações, quem sabe um dia... Seja mais sucinto.
Bem, bem, bem, para escapar do magic bus dei o velho golpe do envelope.
_ Que porra é essa?
Aproveitando um pequeno envelope que guardava o bilhete, eu disse bem alto “quem perdeu o envelope com o dinheiro?”, todos gritaram “fui eu, é meu, dá cá!”, já brigando entre eles, pra saber quem era o dono, pode crer?
_ E aí?
Eu respondi “acalmem-se, acalmem-se, por enquanto só encontrei o envelope, nada do dinheiro”. Dois homens e uma senhora discutiam, declaravam-se os verdadeiros donos do dinheiro. O trocador sabia que não existia dinheiro algum, mandou-me descer temendo o pior.
_ Acabou?
Escapei bonito. Nem sete minutos depois e outro momento crucial.
_ Outro?
_ O celular.
_ O celular?
Toca. Não atendo. Toca, não atendo. O medo do desconhecido.
_ Sei.
Toca de novo, alô. E vamos naquele quem é, eu é que lhe pergunto, saudade de você, ele diz, e sem saber digo “eu também”. Veja que eu senti saudade de alguém, eu nem sabia quem, porque bom é falar com algum conhecido.
_ Um ilustre conhecido desconhecido?
_ É.
E ele falou “que loucura foi aquele dia, vamos combinar outro desses”, com menos vodka e menos gelo, por favor, que minha garganta foi nocauteada, respondi fingido que só, porque lembrar eu não lembrava.
Do outro lado, o conhecido continuou falando ao telefone. “Da próxima te acompanho no Forró do El Dorado, soube que você aprontou barbaridades por lá, depois me conte direito essa história, compañero.” Pode deixar que conto sim, claro, eu respondi.
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Texto: Alexander Reis
Ilustrações: Pablo Leandro
Quarta, 09h35min
Bem, bem, bem, nenhum universozinho fantástico sobrevive sem os compañero, disse-me um amigo dos mais experientes.
Sugerindo mais intimidade do que tínhamos de fato, o safado veio com um papinho de deixe-me narrar minha história, dê cá um pouquinho de prestígio pro compañero.
O quê que há, rapaz, aqui não! De forma alguma, não senhor, a não ser que se trate da verdade mais pura e seja ainda assim interessante, quem narra aqui sou eu.
Sei que tenho arroubos de exigência, pois é árduo e desgastante ser ao mesmo tempo honesto e interessante. Mas cada um é exigente ao seu modo, pelo menos é o que dizem alguns dos grandes autores da filosofia de boteco. “Fora os que perderam qualquer padrão de exigência, seja por necessidade ou por alguma patologia mesmo”, foi o que li e vi que realmente é assim
Mudo a toada, volto dessa de divagar, pois disse ainda o amigo experiente que, bem, se eu recusasse, que Narcisão era eu então!, vê se pode, mas haja o que hajar, não sucumbo a ameaças, qual o quê. E o amigo só naquela, usando a experiência, aquele por que não?, o solidário não quer solidão, eu disse tudo bem, tudo está bom enquanto estiver bom; conte, meu filho, conte. Estamos todos em casa, pode contar, assuma o leme que vou descansar, “é com você” eu disse pra ele. “Está bem, obrigado”.
Segunda, 09h23min ou 09h25min, 3 anos antes
Uma segundona, 09h23min ou 09h25min da manhã, não me lembro bem.
_ Continue, hoje você é quem manda, falou tá falado.
_ Não vai anotar?
_ Tenho a memória boa, se houver algum buraco eu completo da minha cabeça.
Não vou contar o meu nome.
_ Por quê?
_ Naquele momento eu não lembrava, um lance de amnésia.
Não lembrava meu nome, não lembrava de nada, não sabia quem era o barrigudo na frente do espelho, quem seria?, um piri-pac brabo, brabo.
E eu naquela filosofia de não ter filosofia, ia indo, sem nome e sem nada, o que ia fazer? Fazia dias, a única cousa que eu sabia é que acordei num quarto.
_ Você disse cousa?
_ Foi o que eu disse.
_ Você disse quarto?
Acordei num quarto, ali na Santos Dummont, não muito longe da Tupis. No aposento tinha um ventilador que dava um ventinho gostoso, e tinha também um celular e um bilhete que dizia “Eldorado – o forró da sacanagem”.
Eu pouco saía do quarto, como eu pagaria aquele quarto? Na maior nóia, um rebuliço típico do centro me espantava, pela manhã eu dormia e assim eu ia, enquanto corria a barca.
_ Tudo bem, mas seja mais sucinto pra não perder o bonde; quem perde o bonde vai a pé, sabe cumé.
Quem fica bem sob pressão é um cupim bem temperado, a suã também. Vamos por partes, como diz aquele que prepara o porco para a feijoada, ou você pensa que a feijoada nasce como chega ao prato?
_ Fora os que plantam pés-de-feijoada, muito comum lá em São Judas das Botas, sei como funciona a cousa.
Conversa mole, Sujeito, deixo pra ti, compañero, mas a verdade é que eu só tinha coragem de deixar o quarto à noite, tanto que numa dessas, dei uma voltinha esperta e me deparei com um ônibus em um momento batizado como crucial por pessoas de vocabulário limitado.
_ Se quiser posso procurar um sinônimo de crucial e colocar.
_ Não precisa.
_ O que aconteceu de cruciális, decisivo, terminante?
Eu vi um ônibus. Na frente, um número qualquer e um letreiro que dizia “Eldorado”.
Mesmo sem o dinheiro da passagem, entrei. Expliquei a situação com calma e o trocador perplexo disse-me “aí no seu bilhete não está escrito Eldorado, mas, sim, El Dorado. Conheço bem: um forrozinho perto ali do Santa Inês”. E completou com um tal de você tem que pagar sua passagem.
_ A solidariedade não vive em todos os corações, quem sabe um dia... Seja mais sucinto.
Bem, bem, bem, para escapar do magic bus dei o velho golpe do envelope.
_ Que porra é essa?
Aproveitando um pequeno envelope que guardava o bilhete, eu disse bem alto “quem perdeu o envelope com o dinheiro?”, todos gritaram “fui eu, é meu, dá cá!”, já brigando entre eles, pra saber quem era o dono, pode crer?
_ E aí?
Eu respondi “acalmem-se, acalmem-se, por enquanto só encontrei o envelope, nada do dinheiro”. Dois homens e uma senhora discutiam, declaravam-se os verdadeiros donos do dinheiro. O trocador sabia que não existia dinheiro algum, mandou-me descer temendo o pior.
_ Acabou?
Escapei bonito. Nem sete minutos depois e outro momento crucial.
_ Outro?
_ O celular.
_ O celular?
Toca. Não atendo. Toca, não atendo. O medo do desconhecido.
_ Sei.
Toca de novo, alô. E vamos naquele quem é, eu é que lhe pergunto, saudade de você, ele diz, e sem saber digo “eu também”. Veja que eu senti saudade de alguém, eu nem sabia quem, porque bom é falar com algum conhecido.
_ Um ilustre conhecido desconhecido?
_ É.
E ele falou “que loucura foi aquele dia, vamos combinar outro desses”, com menos vodka e menos gelo, por favor, que minha garganta foi nocauteada, respondi fingido que só, porque lembrar eu não lembrava.
Do outro lado, o conhecido continuou falando ao telefone. “Da próxima te acompanho no Forró do El Dorado, soube que você aprontou barbaridades por lá, depois me conte direito essa história, compañero.” Pode deixar que conto sim, claro, eu respondi.
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Texto: Alexander Reis
Ilustrações: Pablo Leandro