terça-feira, abril 07, 2009

O espelho


Fazia séculos que não encarava de verdade um espelho. Bobagem, sempre dizia. - Não preciso me ver para saber que aqui permaneço, intacto, inerte, sem qualquer preâmbulo ou ocasional mudança.


Um dia, sem perceber, acabou dando de cara consigo mesmo. O assombro foi tamanho que este encontro abalou muito seu jeito de pensar. Reparou no corpo, nos olhos, cabelos, mãos, braços, na alma refletida. Um diálogo disperso começara, sem qualquer sinal de intimidade.


- Olá – disse o reflexo. Quanto tempo não lhe vejo. Por onde tens andado?

- Vou por ai. Realmente sentiu minha falta?


O espelho permaneceu alguns segundos em silêncio e refutou.


- Você engordou. Está bem corado. Deve estar feliz, mesmo tão longe de mim.

- É... As coisas mudam não é mesmo? Mas vaidade nunca foi o meu forte. Talvez a loucura. Onde já se viu? Conversar com o próprio reflexo?

- Eu que o diga. Passei tantos anos calado. A solidão machuca, sabia? Neste meu mundo, tão ao contrário, o pecado seria a desvirtude da vaidade.


- Desvirtude? Essa palavra existe?

- Acho que não, mas deu pra entender né. Sou meio gauche no mundo. Respeite.

- Sim. Compreendo. Você também está bem. Apesar de um pouco pálido.

- Não tenho saído muito. Este vidro sempre tão empoeirado acaba com minha saúde.

- Um mal necessário, creio. Deixando o espelho sujo, fica mais difícil de me ver, ou te ver, ou nos vermos, sei lá.


- Você é meio covarde, não é mesmo? Por que tem tanto medo de encarar a realidade refletida?

- Realidade? Olho para o espelho e vejo apenas o que quero. Se fecho os olhos, nada vejo. Realidade? Chega a ser patético comparar algo refletido com o que acontece à minha volta.

- Nunca ouviu falar que os olhos são o espelho da alma? Você às vezes me parece tão raso. Tão vazio. É falta de mulher, por acaso?


- Espelho insolente. Por isso passei tanto tempo sem olhar pra você.

- Medo da verdade, não é? Sempre o medo!

- Medo? Não tenho medo, meu caro.

- Você tem medo sim. Medo de envelhecer. Envelhecer sozinho. Covarde!


Ambos permanecem em silêncio. Longos minutos se encarando. Tentando ver os defeitos, as falhas, na verdade predominantes, como em qualquer um.


- Só não lhe quebro todo por razão do azar que pode me proporcionar.

- Talvez fosse um fim mais justo. Prefiro ficar em mil pedaços lhe vendo ponto a ponto do que inteiro e abandonado sem qualquer sombra do seu eu.

- Psicótico, você.

- Foram as paixões que me deixaram assim. A falta de alegria acaba com a glória de qualquer imagem refletida.


- Tenho que ir. Esse papo me cansou.

- Vá! Divirta-se para variar um pouco. Encha a cara, talvez. Quem sabe assim não me traz um sorriso. Ou dois. Seria bom! Desejo-lhe sorte, apesar de tudo.

- Farei o possível, meu caro. Somos bem parecidos, afinal.

-Mais do que você pensa.

- Tomo uma por você.

- À nossa saúde.

- Sempre.


Despediram-se e cada um foi para seu lado. Na volta, a imagem não seria a mesma, e o diálogo esquecido. Estava de braços dados com uma linda mulher. Eram os dois sorrisos que havia prometido.

16 comentários:

TIAGO SÂNZIO disse...

tentativa de um texto um tanto diferente. Espero que apreciem!

Abraços!

M. disse...

Ho-ba-la-la! "A voz ritma o murmúrio do rio, e isso parece a voz da solidão" - Bandeira, cito de memória.

Érika dos Anjos disse...

Reflexão é algo que anda fora de moda hoje em dia. Porém, quem será que está certo: o mundo ao contrário ou a imagem refletiva?

Parabéns pelo blog.

Erich Pontoldio disse...

Ficou muito bom ... o diálogo " vc com vc mesmo" as vezes machuca mas é bom pois ninguem melhor do que vc para saber o q está acontecendo

Farothi disse...

Dialogar com espelho é algo incomum pelo menos pra mim, fico um texto diferente porém interessante.


http://farothi.blogspot.com/

Venúncia disse...

tá mais filosófico que os filósofos. Seu espelho é machista, se fosse falta de mulher, eu seria lésbica... Encarar é difícl. Deixa ele lá, é melhor!

Alexander disse...

Não entendi se o texto fala sobre bipolaridade ou esquizofrenia. Mas eu sou meio burro mesmo.

Alexander disse...

ô Venuncia, caso volte: tentei comentar no contraponto, mas só tinha opção conta google ou open id... então, não consegui. Mas sei lá, eu sou meio burro mesmo.

Nat Valarini disse...

Bom dia!

Meu caro, fazia uma pá de tempo que não lia algo tão bom que prendesse tanto minha atenção.

Adorei as comparações feitas no texto e por ter levantado a questão do medo da verdade, da conversa franca... enfim, a vc tenho só elogios!

Kiso

http://garotapendurada.blogspot.com/

Alesandro Siridakis disse...

Primeiramente obrigado pela visita em meu Blog.
E em segundo, gostaria de dizer, qual pessoa q já não conversou com o seu espelho?rsrsrs...Eu volta e meia converso e isso q não estou bebado!rs...
Irei me adc como seu seguidor, gostei muito do blog.
Parabens

Anônimo disse...

isso me lambra algo, huummmm, deixa eu ver...

ah! plagio da "branca de neve."

TIAGO SÂNZIO disse...

esse anônimo já foi mais criativo...
agradecendo aos comentários!

Unknown disse...

gostei, mas acho que prefiro o texto do post passado...
mas não é ruim...
=p

--
www.moolegal.wordpress.com

Portal Conquistadores disse...

Tiago obrigado pela visita. Sobre os erros em nossos textos, é um dos problemas que temos enfrentado, pois em nossa equipe não temos ninguém que possa fazer esse tipo de serviço. Mais estamos tentando arrumar isso.

Obrigado.

E nos visite sempre. Faça seu cadastro, pois em breve teremos promoções com prêmios.

Diógenes "Didi"

Unknown disse...

Para agradecer a visita, resolvi dar uma passadinha =]
Adorei o texto! Envolveu-me do início ao fim. O diálo entre o eu real e o eu virtual ficou realmente interessante. Até o reflexo tornou-se real, discutindo com o eu real...

Parabéns ;)

Alice disse...

Ah, como já tinha comentado, eu adorei esse texto, kkk, "plágio da branca de neve" foi boa, hauhauah....´Só que tem que esqueci o que comentei, Ti, então...Vai esse mesmo.