segunda-feira, março 30, 2009

Um conto que conto


Quando se conta um conto, imagina-se uma música. A letra, a melodia, a poesia, o princípio, o meio e o fim. Quando se conta um conto, se abstrai o sentido do real, deixando-se navegar em um mundo, em um tempo paralelo, tendo talvez o próprio firmamento como único limite.


Não sou contista, mas gostaria. Por enquanto tentarei apenas recolocar figuras de minha memória, desgastada pela boemia em excesso, mas que tanto me satisfaz.


Lembro-me muito bem de uma senhora em minha infância. Não era muito velha, mas eu era muito novo, sendo o tempo vilão fugaz da noção. Essa senhora vendia salgados e doces na praça da igreja, todos os dias, a partir das 17 horas. Coxinha, pastel, kibe, tudo acompanhado de um delicioso molho que ela mesma fazia e se orgulhava em dizer isso.


E o doce? Chamávamos de recheio. Era uma massa que vinha com pedaços de banana por dentro e com muito açúcar refinado por fora. Uma incontestável delícia que custava poucos cruzeiros na época, e logo depois, menos reais ainda.


Pelo menos uma vez por semana eu comprava algo. O recheio acabava rápido, então tínhamos que ir cedo. Eu chegava e ela dizia (sempre): Oi menino. Como você cresceu. E sua irmã? Já se casou?


Estava falando da minha prima, que demorou alguns aninhos para se casar. Eu também estava evidentemente solteiro. Para falar a verdade ainda ando largado pelo mundo, mas isso é uma outra história.


Outro fato importante a constatar é que na condição de “apenas estudante”, ficava sentado pela praça vadiando e mais de uma vez ouvi pessoas pedindo para ela a receita do tal recheio. Ela desconversava, falava da trabalheira, dos filhos e nunca entregava o ouro.


Um dia, eu já adolescente, ela não mais apareceu. O banco da praça se tornou vazio. Ouvi histórias de que estava cansada, meio doente. Depois ouvi que sua filha lhe maltratava e ela acabou sofrendo um derrame. Hoje não sei nem se continua viva.


E sabe o que mais? Nunca perguntei seu nome. Era a dona do recheio. Sempre foi. Não gosto tanto mais de doces. A cerveja acabou confundindo meu paladar. Com a idade fui tomando conhecimento das cachaças, vinhos, uísques... Mas por algum motivo hoje após o almoço me veio na mente o gosto a tanto tempo esquecido. Deve ter sido a ressaca.


Penso nesta época como um momento singular de alegria. É claro que vivi tantos outros, mas vá se saber por que alguns ficam mais vivos e reluzentes.


Acham estranho? Nem tanto. Sempre que estou perto de certas mudanças a nostalgia, principalmente destas coisas mais simples, acabam por surgir. Gosto disso.


Qual mudança? Um misto de alegria e frio na barriga. Saio do antigo bairro, da casa onde tenho proteção e vou enfrentar o "mundo". No MEU canto! Novas responsabilidades e desafios. Tudo novo!


Quero lembrar sempre deste passado. Desta dona que adoçava um pouco meus dias, sem é claro deixar de pensar no presente, onde tenho a missão de, mais uma vez, tomar o rumo desta embarcação surrada e cheia de devaneios (se isso é possível).


E, com toda certeza, outros doces virão. Agora um pouco mais amargo, esfumaçado, melancólico, sexual talvez, em ritmo de samba com certeza. Cada criança, na verdade, tem o doce que faz por merecer. Não é assim que funciona?

14 comentários:

TIAGO SÂNZIO disse...

perguntei pro meu pai o nome dela: Dona Tânia! só pra esclarecer..

e queria saber se meus amigos lembram dela.. será?

abs!

MiChELe BrAGaNçA disse...

Caramba!!!
Que delicia de texto...
Achei alguém que pensa como eu!!! rsrs

Adorei a parte, que o nome dela é Dona do Recheio.
Quantas pessoas, em nossas vidas, que recebem o nome do que faz....

Amei, Banjo...

Beijos com carinho!!!

Inez disse...

Lendo o conto lembrei-me do que você escreveu no início - Não sou contista mas gostaria de ser. Fiquei pensando o que seria então se fosse contista se não sendo escreveu esse belo conto de uma lembrança do passado tão presente.
Parabéns!

Elton D'Souza disse...

Pois te digo que mesmo eu sendo gaúcho há algumas palavras que só entendo pelo contexto.

Sidcafeina disse...

Pô, texto muito gostoso de se ler, parabéns pelo blog.

SidCafeina

Ketlyn Lourenço disse...

ADOREI...
é tão doce - realmente senti o gosto do recheio - é incrivel como quando somos crianças tudo nos é tão simples, fácil e nos faz feliz...já agora...parece q estamos sempre sozinhos e em busca de algo que não sabemos o que é e nem onde está...
aí a cachaça chega até a gente...e td mineiro adora uma cachaça hehe:D

ha...sim meu blog é em homenagem ao Raul...afinal toca RAUL PORRAAAA!!!
ahhahahahha

bjooOs

Leké disse...

Não sabia que a Pitucha era conhecida como a Dona do recheio. Mas lembro dela lá na praça da igreja!

TIAGO SÂNZIO disse...

Poxa.. comparar ela com a Pitucha é sacanagem.. hehe...

Pitucha era sua vizinha...
Os doidos do Glória...

Anônimo disse...

Parabéns pelo texto! Muito bem escrito!

Abraços

Anônimo disse...

legalzim... ta melhor do q o outro...
Leké perdeu a virgindade com a Pitucha sabia? kkkkkkkkkkkkkkkk

Leké disse...

Eu tb não teria coragem de colocar meu nome em um comentário desse... só anônimo mesmo.

Unknown disse...

A minha era dona maria mole...
Hoje em dia é a dona cevada...hehe

Olha aí, ó:

"Nos tempos idos, nunca esquecidos, trazem saudade ao recordar..."

Bjssssssss

TIAGO SÂNZIO disse...

é Leké! sei não heim! heaheahea
Primeira vez que concordo com o anônimo!

Valeu pelos comentários, meu povo!

Salve Cartola, Dona Flavia.. rs

Alice. disse...

Que fofo esse texto....Bacana demais, qro escrever igual a vc qdo crescer...É incrível como nossa vida tem gostos de vários e variados gostos e sabores...E sempre vão mudar, pq nós mudamos.
Beijos.