
Quando se conta um conto, imagina-se uma música. A letra, a melodia, a poesia, o princípio, o meio e o fim. Quando se conta um conto, se abstrai o sentido do real, deixando-se navegar em um mundo, em um tempo paralelo, tendo talvez o próprio firmamento como único limite.
Não sou contista, mas gostaria. Por enquanto tentarei apenas recolocar figuras de minha memória, desgastada pela boemia em excesso, mas que tanto me satisfaz.
Lembro-me muito bem de uma senhora em minha infância. Não era muito velha, mas eu era muito novo, sendo o tempo vilão fugaz da noção. Essa senhora vendia salgados e doces na praça da igreja, todos os dias, a partir das 17 horas. Coxinha, pastel, kibe, tudo acompanhado de um delicioso molho que ela mesma fazia e se orgulhava em dizer isso.
E o doce? Chamávamos de recheio. Era uma massa que vinha com pedaços de banana por dentro e com muito açúcar refinado por fora. Uma incontestável delícia que custava poucos cruzeiros na época, e logo depois, menos reais ainda.
Pelo menos uma vez por semana eu comprava algo. O recheio acabava rápido, então tínhamos que ir cedo. Eu chegava e ela dizia (sempre): Oi menino. Como você cresceu. E sua irmã? Já se casou?
Estava falando da minha prima, que demorou alguns aninhos para se casar. Eu também estava evidentemente solteiro. Para falar a verdade ainda ando largado pelo mundo, mas isso é uma outra história.
Outro fato importante a constatar é que na condição de “apenas estudante”, ficava sentado pela praça vadiando e mais de uma vez ouvi pessoas pedindo para ela a receita do tal recheio. Ela desconversava, falava da trabalheira, dos filhos e nunca entregava o ouro.
Um dia, eu já adolescente, ela não mais apareceu. O banco da praça se tornou vazio. Ouvi histórias de que estava cansada, meio doente. Depois ouvi que sua filha lhe maltratava e ela acabou sofrendo um derrame. Hoje não sei nem se continua viva.
E sabe o que mais? Nunca perguntei seu nome. Era a dona do recheio. Sempre foi. Não gosto tanto mais de doces. A cerveja acabou confundindo meu paladar. Com a idade fui tomando conhecimento das cachaças, vinhos, uísques... Mas por algum motivo hoje após o almoço me veio na mente o gosto a tanto tempo esquecido. Deve ter sido a ressaca.
Penso nesta época como um momento singular de alegria. É claro que vivi tantos outros, mas vá se saber por que alguns ficam mais vivos e reluzentes.
Acham estranho? Nem tanto. Sempre que estou perto de certas mudanças a nostalgia, principalmente destas coisas mais simples, acabam por surgir. Gosto disso.
Qual mudança? Um misto de alegria e frio na barriga. Saio do antigo bairro, da casa onde tenho proteção e vou enfrentar o "mundo". No MEU canto! Novas responsabilidades e desafios. Tudo novo!
E, com toda certeza, outros doces virão. Agora um pouco mais amargo, esfumaçado, melancólico, sexual talvez, em ritmo de samba com certeza. Cada criança, na verdade, tem o doce que faz por merecer. Não é assim que funciona?